Para todos verem: a imagem de uma fotografia antiga em preto e branco mostra uma propriedade rural com diferentes construções, em meio a uma pequena vila ou povoado. Na imagem, é possível ver algumas casas simples com telhados de duas águas e janelas visíveis. Uma estrada cruza a cena na horizontal, com um carro antigo estacionado próximo a uma das casas. Ao redor, há algumas árvores e vegetação. Também é possível observar pessoas próximas às casas, mas elas estão desfocadas devido à qualidade da foto. A imagem transmite um aspecto histórico, possivelmente do início do século 20.
No final do século 19, a bicicleta era um acontecimento. No Brasil, ainda não se fabricava nada parecido em escala, e as poucas que circulavam eram importadas, vindas de marcas francesas, inglesas ou americanas.
Eram joias de aço e borracha, símbolos de modernidade que custavam o equivalente a vários meses de salário de um trabalhador comum. Andar sobre duas rodas, naquela época, era privilégio de quem tinha posses ou de quem, por acaso, tivesse muita sorte.
Foi o caso de Hermann Weege. Quando anunciou, em 1898, que deixaria de trabalhar para a firma Hauer & Irmão, o proprietário, Francisco Hauer, resolveu presenteá-lo com uma bicicleta em compensação pelos bons serviços prestados.
Não era o modelo nem de longe mais desejado entre os fregueses da casa comercial. Era, na verdade, o mais simples que tinham no estoque — mas ainda assim, era uma bicicleta! Um veículo próprio, reluzente, e pronto para desbravar o mundo.
Foi com ela, e munido de muito fôlego, que cumpriu o retorno para casa, pedalando de Curitiba até o Rio do Testo.
O sol ainda não havia nascido sobre a capital paranaense quando Hermann ajustou o guidão e conferiu os pneus. A cidade dormia sob a luz trêmula dos lampiões a gás, e o ar fresco da manhã carregava o cheiro da chuva dos últimos dias. Mas o céu clareava em tons de azul pálido, o que era promessa de tempo firme.
Seguiu rumo à Lapa, no Paraná, descobrindo logo de cara os desafios que iriam se multiplicar ao longo do trajeto. Infelizes trechos de barro por onde as rodas afundavam, obrigavam-no sempre a desmontar e empurrar, com as botas imersas na lama.
Os carroceiros que passavam, olhavam com frequente curiosidade para aquele homem junto a uma engenhoca de metal, quase sempre a xingar nomes em alemão.
Depois da Lapa, o relevo se agitava em colinas cansativas. Nas descidas, o vento cortava o rosto e a bicicleta chacoalhava nas pedras soltas; nas subidas, Hermann desmontava e, por vezes, carregava o quadro nos ombros para evitar atoleiros traiçoeiros.
Pequenas vendas e ranchos ofereciam um copo d’água ou um pedaço de pão de milho, enquanto tropeiros trocavam notícias sobre o caminho.
Em Rio Negro, ainda no estado vizinho, a fadiga já batia forte, mas dali para frente, a estrada só piorava. Cruzar o rio, aliás, exigiu extrema atenção e paciência. Sem ponte, precisou esperar um balseiro, que o levou com bicicleta e tudo numa jangada de tábuas, enquanto as águas corriam escuras e apressadas sob seus pés.
Ao entrar em Santa Catharina, a mata do planalto o envolveu num silêncio profundo, quebrado só pelo grasnar de garças e pelo farfalhar das folhas. Em Mafra, conseguiu abrigo e a notícia de que, mais à frente, os rios seriam traiçoeiros e as subidas, ainda mais ingratas.
E foram. Na descida para o vale do Itajaí, a bicicleta quase fugiu ao controle, patinando na terra úmida. Houve trechos em que avançou por picadas na mata, galhos arranhando os braços e o cheiro de folhas molhadas no ar. Mas quando avistou as primeiras plantações alinhadas dos colonos alemães, soube que estava perto do antigo lar.
Chegou pela estrada de terra batida já desmontado, a empurrar a companheira de viagem. No meio da paisagem de Pomerode Fundos, a casa enxaimel dos pais, Carl e Caroline Weege, erguia-se com simplicidade.
A residência era um testemunho da prosperidade modesta, mas digna, que a família alcançou após anos de trabalho duro na terra brasileira. “Deus abençõe esta casa”, ou melhor, “Gott segne dieses Haus“, dizia a inscrição escrita em alemão gótico no alto da porta.
Lá dentro, a mãe Caroline estava na cozinha atarefada, com o monumental fogão a lenha trabalhando a pleno vapor. Os irmãos e o pai, naquele horário, estavam certamente na plantação. Hermann encostou a bicicleta na parede aos fundos da casa e entrou de mansinho.
— Mutter! — chamou, abrindo os braços.
Ela se virou, primeiro surpresa, depois com os olhos marejados.
— Mas, meu menino… e eu achando que ia ter de esperar mais semanas! — e o abraçou com força.
— Não podia esperar mais. Estava com saudades… e com muita fome da sua comida!
Naquele dia, Caroline tinha preparado pão de aipim em quantidade, e o reencontro virou festa. Teve carne assada, linguiça, queijo e Schnapps para celebrar.
A casa, projetada para abrigar muitos filhos, era um exemplo de funcionalidade. O piso de peroba, erguido do chão, afastava a umidade e as cobras. Na mesa de madeira comprida, todos se acomodavam para as refeições. Nos dormitórios, beliches de madeira e colchões de palha de milho separavam meninos e meninas.
Do lado de fora, a propriedade se dividia entre o cultivo para venda, roça para subsistência, pomar e pasto. Caroline produzia queijos, defumava carnes e preparava a sua famosa Schmier de banana, que Hermann atacou sem cerimônia.
O patriarca, quase sempre quieto e sisudo, estava visivelmente satisfeito com o retorno do primogênito. Sorria feliz de ver o filho são e salvo, mais maduro e com algum dinheiro no bolso.
Mas a aventura, que Hermann repassava com vigor cada detalhe aos irmãos, na verdade, pouco o impressionava. Não era nada perto do que ele próprio, muito mais jovem, havia vivido vindo da Alemanha para o Sul do mundo.
Carl jamais esqueceu de toda a viagem. Afinal, já tinha doze anos quando deixou a vila de Labes, às margens do rio Rega, no distrito de Regenwalde, na antiga Pomerânia. Em 1868, ele embarcou com os pais, Johann Carl Friedrich Wilhelm Weege e Henriette Düsing, e os irmãos no veleiro Lord Brougham.
Lembrava especialmente do convés abarrotado de gente e do cheiro ocre de vômito, suor e excrementos que apodrecia no ar estagnado. A travessia durou mais de dois meses, em que a rotina era ditada pelo balanço das ondas e pelas rajadas de vento.
Havia dias de mar calmo, quando se podia circular pelo convés sob a vigilância dos adultos; mas também havia noites de tempestade, quando a água invadia por frestas, e o barulho dos mastros rangendo tirava-lhe o sono. A comida era péssima e racionada: pão duro, batatas, peixe seco.
Foram duras semanas no mar até aportar no Brasil e, de lá, seguir para Pomerode Fundos.
— Sei bem, papai… — disse Hermann, ao final da noite, quando se acomodaram na varanda — … que essa minha aventura não foi nada perto do que vocês fizeram para chegar até aqui.
— Atravessamos o oceano Atlântico. Sem bicicleta, sem estrada… só vela e esperança.
Carl deu um gole no Schnapps e completou:
— Mas é isso. Cada Weege é um desbravador, no seu tempo e do seu jeito. Não é à toa que Weege soa como “Weg”, caminho, em alemão. Está no nome.
Coincidência ou não, os anos se passaram e, para além de empresário, Hermann Weege deixou como um de seus maiores legados o talento para, literalmente, abrir caminhos.
Já em 1913, ao adquirir o primeiro automóvel de Pomerode, viu-se obrigado a melhorar a estrada para que o veículo pudesse rodar da Stadtplatz Blumenau até a sua garagem. Financiou ele próprio os serviços e depois entregou a via pronta aos órgãos públicos.
Mais tarde, como deputado estadual eleito entre 1927 e 1930, voltou a investir esforços em melhorar o acesso da região. Como representante político, conseguiu que o governo estadual ampliasse e pavimentasse a estrada que ele próprio ajudou a abrir, ligando Blumenau a Pomerode, e ainda garantiu benfeitorias na ligação entre Pomerode e Jaraguá do Sul.
Não por mero acaso, seu nome segue firme estampado em placa de rua, servindo de passagem ao dia a dia pomerodense no Centro da cidade.



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