Para todos verem: a imagem de uma fotografia em preto e branco mostra um prédio de dois andares com várias janelas retangulares alinhadas no andar superior. O prédio tem um telhado de duas águas inclinado e uma parte esquerda com arcos na fachada, indicando uma possível entrada. Em frente ao prédio, há uma área aberta e uma calçada. É possível ver algumas pessoas defronte o edifício. O ambiente parece tranquilo.

Antes de se consagrar empreendedor, Hermann Weege treinou muito o olhar para os negócios.

Mais velho em meio a 15 irmãos, não precisou se limitar à ideia de que viveria da lavoura. Recebeu dos pais, os imigrantes pomeranos Carl e Caroline, o privilégio de estudar na Stadtplatz Blumenau, no Colégio São Paulo. Aluno exemplar, de lá, aos 14 anos, seguiu para Itajaí, no litoral, onde foi admitido como aprendiz na respeitada Companhia Comércio e Indústria Malburg.

Como se sabe, com grandes virtudes também vêm grandes responsabilidades. O ritmo de trabalho por lá era intenso e começava aos primeiros raios de sol, fosse a varrer o chão de madeira, polir balcões ou conferir estoques.

Cada ferramenta, saco de farinha ou prato de porcelana tinha lugar certo, e a organização era questão de honra para a empresa de imigrantes germânicos.

— Weege, por que acha que insisto para cada coisa ter seu lugar? — bradou, atrás da estante, a voz firme do senhor Bruno Malburg.

— P’ra… se achar rapidamente o que o freguês precisa? — arriscou Hermann.

— Sim, para não fazê-lo perder tempo. Mas não apenas! — frisou o proprietário. — Quando entra e vê tudo limpo, organizado, o que o freguês pensa?

— Que o dono é alguém valoroso, que sabe o valor das coisas? — completou o garoto.

— Exato! — disse Malburg, batendo-lhe no ombro. — O ambiente de uma casa comercial é como um bom terno, meu jovem. Antes mesmo de abrir a boca, revela quem você é.

Em meio às lições de gestão do patrão, Hermann afiava o cálculo mental.

Sem máquinas registradoras, as contas tinham de ser feitas de cabeça, sem espaço para erro. E o freguês podia pagar em réis, em marcos ou até em sacas de fumo! Cabia ao aprendiz anotar tudo com números precisos e caligrafia impecável no livro de registros.

Também era preciso entender a procedência das mercadorias e, principalmente, saber lidar com as pessoas. Itajaí era cidade portuária de línguas misturadas, onde o baixo alemão se encontrava com o italiano e com o português de sotaques variados.

Para vender bem, era preciso saber ouvir, sorrir e entender que cada freguês trazia consigo mais do que moedas. Trazia histórias, hábitos e expectativas.

Passados quatro anos de experiência na Casa Malburg, aos 18, Hermann decidiu ir ainda mais longe na profissão. Curitiba, comentavam, não era apenas uma cidade bonita e fria. Naquele final do século 19, era um centro pulsante de negócios no Sul do país, cheio de oportunidades.

— Vai lhe fazer muito bem. — apoiou o pai.

— Acredito que sim. É uma firma de alemães, como nós, e tem muito boa reputação.

— Além disso — completou o patriarca — você estará num lugar onde tudo acontece mais rápido. Gente, ideias, negócios. É assim que se cresce: ampliando a nossa visão de mundo.

A Hauer & Irmão ficava numa rua movimentada do Centro da capital paranaense, a poucos passos da catedral. Muito requisitada, tinha uma virtuosa freguesia vinda de várias partes do estado.

A casa comercial vivia apinhada de senhores de chapéu e bengala e suas elegantes senhoras, ávidas pelas novidades que chegavam importadas da Europa para fazer inveja aos vizinhos e parentes. Metade do espaço era dedicado à venda de ferramentaria, metais, utensílios; a outra metade aos tecidos, roupas e acessórios, enxoval da casa, decoração e brinquedos.

Cabia ao vendedor saber navegar tranquilo entre esses dois mundos, algo que Hermann percebeu ser o verdadeiro pulo do gato naquele ramo. Fidelizar fregueses, bem aprendeu, era mais sobre ganhar confiança ao apresentar boas soluções do que apenas vender coisas.

Um ano antes de se despedir dos curitibanos, em 1897, Hermann acompanhou com orgulho a evolução da firma para um luxuoso prédio de três andares. A majestosa loja passou a funcionar no térreo, enquanto nos andares acima moravam as famílias de Francisco e Augusto Hauer, os irmãos proprietários.

Era de onde, no dia a dia, prestigiavam os fregueses mais estratégicos com convites exclusivos para o café da tarde. A vida e os negócios, tudo sob o mesmo telhado, era como tinha de ser. Levou o exemplo de volta ao seu próprio desígnio, na vila do Rio do Testo.

Com a economia modesta dos anos trabalhados longe, adquiriu um terreno próximo à igreja luterana no centro da vila, do outro lado do rio. Em 1901, subiu ao altar com Pauline Karsten e não levou apenas a noiva para casa. No mesmo lote onde ergueu a morada para sua nova família, constituiu a Casa Comercial Weege.

Para além de um armazém de secos e molhados, o lugar se tornou um ponto de encontro do Rio do Testo, daqueles que todos os moradores sabiam onde ficava. Por lá, os colonos chegavam a pé, montados a cavalo ou de carroça, por vezes trazendo produtos para trocar, como milho, banha e fumo.

Hermann conhecia cada um pelo nome e, quando preciso, anotava as compras no caderno, confiando que a colheita seguinte pagaria a conta.

Herr Weege, tem corda de sisal? —

— Cinco metros ou o rolo inteiro? —

— Preciso também de fumo de picar, daquele que não desmancha na mão… —

— Tem, sim. Vai querer o mais forte ou o suave? —

— E a graxa para as botas, chegou? —

— Chegou, da preta e da marrom. Próximo!

Era comum o freguês chegar ao casarão enxaimel em busca de pregos e sair com um vidro de xarope, duas linguiças, uma boneca, um punhado de gomas e meia dúzia de fofocas sobre o que se passava na vila. Mais do que negociar produtos, a venda solucionava problemas, ajudando a costurar o tecido comunitário do Rio do Testo, um rolo de fazenda e um galão de querosene de cada vez.

Por décadas, a Casa Comercial Weege foi o comércio que abasteceu casas, sociedades de tiro e até outros comércios. Portanto, era quase inevitável que fosse por ali que se introduziria o primeiro supermercado local.

O tal “sistema de Auto Serviço” ou “método de pagar na saída”, do qual falavam nos jornais, era um formato de loja inventado nos Estados Unidos. Espalhou-se pelo mundo no embalo da reconstrução econômica do pós-guerra e chegou às grandes cidades brasileiras em meados dos anos 1950.

Em Pomerode, no entanto, só em novembro de 1974.

Inclusive, até já fazia bom tempo que a própria Casa Comercial tinha deixado para trás o jeitão de armazém. Em 1958, ano da primeira conquista do Brasil na Copa do Mundo, o velho casarão enxaimel havia cedido lugar a um prédio de dois andares de linhas retas, com uma ousada fachada de ladrilhos escuros e tantas janelas que pareciam querer competir com as demais vitrines do comércio da área central.

No piso superior, ficavam armarinho, roupas, calçados, artigos para casa, decoração, presentes e brinquedos; no térreo, todo o resto. Dentro desse novo formato, era justo que fosse também atualizado o tradicional modo de atendimento.

Aliás, naquela altura, nem mais o território era Distrito! O Rio do Testo havia se tornado município de Pomerode desde 1959, e não dependia mais de Blumenau para tomar decisões. Era digno que os moradores acompanhassem o ritmo de autonomia. Pelo menos, na hora de fazer as compras do mês.

A dinâmica do então revolucionário supermercado era inovadora, sim, mas muito simples. O freguês pegaria uma cestinha, circularia pelo espaço a escolher os produtos sozinho e pagaria tudo antes de ir embora. Porém, para uma clientela acostumada a ser atendida no balcão com o vendedor que pesava, embrulhava e sugeria o que levar, isso soava quase como ficção.

Coube à geração dos netos, então à frente dos negócios da Indústria Alimentícia Weege, enfrentar o desafio.

— E se ninguém souber o que fazer, senhor Juergen? — perguntou Lena, funcionária de longa data.

— Então colocamos gente para ensinar! Um vendedor para cada corredor, se for preciso. A gente mostra, explica e acompanha, até que eles aprendam.

No primeiro dia de funcionamento, o supermercado foi uma festa de olhos arregalados. A inauguração foi impecável, com tudo propositalmente montado para impressionar. As luzes acesas em toda a loja, o espaço amplo, as prateleiras e as geladeiras cheias.

E teve quem passou horas lá dentro, não porque comprou muito, mas porque não sabia se deveria encostar nos pacotes sem permissão.

— Mas se ninguém vai me atender, como é que eu vou saber o preço? — esbravejou o cliente, inconformado, à funcionária.

— Está marcado na etiqueta, senhor Otto! É só olhar aqui, veja — explicou a vendedora, munida da maior paciência do mundo.

Ao final do expediente, Juergen subiu ao segundo andar e se sentou numa cadeira de madeira, ao lado do balcão onde se embrulhavam os presentes. Chamou Lena, que veio arfando com os pés doendo de tanto correr para lá e para cá o dia todo, a monitorar os clientes.

— Então, conte logo, estou curioso para saber. Como foi o batismo de fogo?

Lena riu, balançando a cabeça.

— “Sêo” Juergen, houve de tudo. Acho que a Frau Helga ficou aqui a tarde toda, pegando na mão produto por produto. Mas o que mais teve foi gente que, de tão nervosa com a novidade, voltou para casa sem comprar nada, pedindo desculpas na porta.

— E ninguém tentou sair com nada escondido?

— Sair, não teve. Mas uma criança abriu um pacote de bolachas e comeu inteiro aqui dentro, às escondidas. Mas assim que percebeu, a mãe nos pediu desculpas e pagou ao caixa. Ah! E o velho Passold que se confundiu e achou que a cestinha era brinde. Ficou muito chateado quando avisaram que teria que devolver na saída.

Juergen riu alto.

— Mas acredito que logo se acostumam. Os mais envergonhados, pelo menos. Uma hora vão ter que “fazer o rancho” e aprender a escolher o que levar pra casa, não é?

— Claro. Nisso, as coisas não mudaram tanto assim! — riu o chefe. — Desde o tempo em que o Opa montou isso aqui, as pessoas sempre vão precisar comprar coisas.

O empresário, sempre bem humorado, olhou para as prateleiras bem arrumadas como quem lembrava de algo, e completou:

— Quer saber, Lena? Acho que o velho Hermann ia gostar de saber que demos uma folga para quem fica no balcão. Sempre ouvia falar que a parte mais difícil de vender era ser resolvedor de problemas, responder na bucha cada pergunta e ainda lidar com todo tipo de gente!

— É, o supermercado simplificou essa parte para gente. Agora, cada freguês se resolve sozinho… — comentou Lena.

— Pois é. Só precisamos manter a regra que ele sempre cobrava: fazer o freguês sentir que achou tudo o que precisava… até o que não sabia que precisava.

Juergen deu um sorriso largo. Apoiado no balcão, fez uma pausa dramática e imitou a voz carregada de sotaque germânico do avô:

— “Supermercado? Isso é simples, meu rapaz! Agora o freguês é o vendedor e o cliente ao mesmo tempo. E vai acabar fazendo um bom negócio com ele mesmo…”

Lena caiu na risada com a brincadeira.

— E o pior, é que é bem isso!

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